A violência doméstica em Portugal

Quando os relatos de violência doméstica se ouvem, carregam muitas vezes consigo a culpa de cometer uma traição, uma infidelidade, por descreverem situações de sofrimento e de atos cruéis praticados por quem é suposto proteger.

De acordo com as últimas estatísticas lançadas pela APAV, com referência ao ano de 2020, 74,9% das vítimas de violência doméstica são mulheres.

A violência doméstica é crime, consagrado no artigo 152.º do Código Penal. Da sua leitura resulta clara e inequivocamente quando é que a mesma se verifica e que formas pode ter, seja por ação, por omissão, por privação de liberdades, seja por agressões físicas, psicológicas ou emocionais.

Descreve, também, as especiais relações entre as partes – agressor e vítima – que estão assentes essencialmente em relações familiares, entre cônjuges, ex-cônjuges, namorados, ex-namorados, unidos de facto, pais e filhos, filhos e pais, vivam ou não na mesma casa.

Para além destas situações, a violência doméstica também pode ocorrer entre outras pessoas, que sendo ou não família, vivam na mesma casa e sejam cidadãos especialmente vulneráveis, tais como grávidas, idosos, doentes ou pessoas que dependam física, económica ou psicológica do agressor com quem coabitam.

Recentemente, com a entrada em vigor da Lei n.º 44/2018, de 09 de Agosto, o artigo 152º do Código Penal prevê uma agravante à moldura penal quando o agente: a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento.

A atualidade e urgência em tutelar estas situações de agressão, que envolvem menores e o acesso imediato através de meios tecnológicos, impôs esta alteração legislativa, em resposta ao que hoje vem sendo descrito (com maior incidência) nas queixas e processos judiciais de violência doméstica.

Cada vez mais se garante a tutela jurídica e os meios de defesa dos ofendidos, com uma maior divulgação e informação sobre o crime em concreto, potenciando a denúncia, como a pedra basilar da defesa de um crime violento que se alimenta no segredo, levando a vítima a habituar-se, a desculpar e a normalizar a conduta do agressor.

Na prática, continua a existir uma grande dificuldade quer da identidade dos próprios agressores e na identificação de comportamentos violentos e repetidos, quer no modo de reagir: saber quem procurar, quais as formas de obter ajuda, como denunciar, onde denunciar e principalmente em receber esclarecimentos sobre o que acontece depois e como será o futuro das vítimas e dos filhos.

Os direitos e a proteção da vítima estão hoje consagrados nas instituições civis, nas associações de apoio à vítima, na polícia, nos gabinetes de proteção às vítimas (como é exemplo o GAIV – Gabinete de Atendimento e Informação à Vítima), na identificação de vítimas que é feita junto dos hospitais, nas linhas de urgência do 112, no acolhimento em casas de abrigo, no apoio técnico da segurança social, na CPCJ – Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.

Também judicialmente se verifica uma maior cautela e atenção a todos os sinais que as vítimas indicam e enorme acuidade na aferição e verificação da existência de crime de violência doméstica.

A jurisprudência recente tem sido cada vez mais permeável às especiais caraterísticas do crime de violência doméstica, como um tipo de crime complexo, que integra diversas formas de ofensas e outros tipos legais de crime e que constitui de per si um crime único mas que pode concorrer com outros tipos de crimes, como por exemplo a violação. Esta evolução traduz o permanente progresso obtido com o conhecimento de situações que, durante tempos intermináveis, se mantiveram silenciadas e escondidos.

Protege-se a integridade da vítima na sua dignidade, como ser humano, abarcando as suas diversas vertentes de integridade física, psíquica e emocional.

De salientar que a violência doméstica é um crime público, o que significa que o procedimento criminal ocorre independentemente da apresentação de uma queixa por parte da vítima ou de terceiro, sendo apenas necessário uma denúncia ou o conhecimento da prática do crime para que o Ministério Público promova o processo.

Independentemente da tutela jurídica e dos meios de proteção existentes, é essencial a rede de apoio social da família, dos amigos, dos técnicos (sejam estes psicólogos, médicos, assistentes sociais ou advogados).

Por último se dirá que a reação da vítima em esconder e calar propicia uma sensação de poder ao agressor, que incrementa o seu domínio, traduzindo o seu poder em permanente e consistente desvalorização das ofensas, manipulando os sentimentos do agredido.

É assim de extrema importância reconhecer o padrão das condutas no âmbito do crime de violência doméstica, uma vez que esse reconhecimento permite identificar, sem dificuldade, as referidas situações e possibilita que o legislador vá redefinindo o tipo legal, ajustando-o a uma tutela jurídica atual e trazendo maior defesa às vítimas. Exemplo disto, é a recente alteração legislativa que referenciámos.

Certo é que ninguém tem de sofrer calado e, por isso, grite bem alto, ganhe coragem que os seus direitos existem e serão protegidos. Os advogados, agentes policiais, auxiliares da Justiça e psicólogos, entre outros profissionais estarão disponíveis para assegurar o respeito pela integridade de todos os envolvidos e garantir o cumprimento da lei e o respeito pela dignidade humana.

Fevereiro de 2022

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